21.2.07

CIRURGIA CARDÍACA

Mais um fim de semana pensando com seus botões e eis que estava decidido: faria ela mesma a cirurgia. Não havia mais como adiar a retirada do abcesso. Abcesso não: objeto. De desejo.

(...)

Já havia acontecido antes, mas a operação anterior fora mais simples: abrir, tirar, fechar. Pontos. O que não fora percebido, no entanto, é que simultaneamente à saída de um, houve a entrada daquele-aquilo outro. Que a princípio não incomodou (e não é que a dor aliviou?). E por ali resolveu ficar...

Mas como é sabido, qualquer objeto estranho ao organismo acaba, mais dia menos dia, sendo expelido por este. E quando dificulta "o processo natural das coisas", causa a inflamação e, em conseqüência desta, a dor.

(...)

Não, ela não teria mais forças para suportar o desconforto. Sendo assim, tratou de preparar o ambiente.

Ligou o som e selecionou a faixa 8 do seu cd verde: The Killing Moon (Echo & The Bunnymen). Olhou para o seu case com certa ternura e colocou-o numa caixa de papelão. Levou-a até o quintal e cobriu-a de álcool. Ateou fogo. Começou a chorar.

Foi para o quarto e pôs-se diante do espelho. Viu seu rosto manchado de rímel. Sentiu pena de si. Quis morrer.

Cobriu o espelho com um pano qualquer, de modo que não pudesse ver nada acima da linha do seu pescoço. Desabotoou os dois primeiros botões da blusa que vestia. Respirou fundo e, sem titubear, cravou suas unhas vermelhas no próprio peito. Com algum esforço e sem nenhum cuidado, dilacerou a pele que a separava do órgão inflamado.

Já na segunda repetição do refrão da música, sentiu a ponta dos seus dedos tocarem algo pulsante. Em lágrimas, respirou fundo novamente e, agora com um esforço maior e tomada pela dor, fincou suas unhas até alcançar o que ali havia ido buscar.

Prendendo-o entre seus dedos, pôs-se a respirar pausadamente a fim de tomar fôlego para a parte mais difícil: a retirada do objeto por completo. Ao sentir-se pronta, começou a puxá-lo. E pu...xá-lo, e...(aaggh)pu...xá-lo. "Nossa!", exclamava em pensamento, sem entender ao certo o que acontecia. O objeto parecia estar preso, como se tivesse desenvolvido garras e estas estivessem fincadas às paredes laterais de seu coração.

E, como a dor ficasse cada vez mais forte, ela resolveu olhar pelo espelho. De fato, o objeto não saía sozinho e, na mesma proporção em que ela se esforçava para retirá-lo, ele trazia consigo pedaços de carne, de artérias e até mesmo outros "objetos", benignos, esquecidos por lá.

Por um instante ela ameaçou pesar as conseqüências da retirada desses excessos... Mas não quis saber. Já havia chegado até ali e menos de 10 centímetros a separavam do alívio. E assim o fez.

Exausta, jogou-se sobre a cama, e pôs-se a olhar para o objeto pela última vez. Assim como também para tudo o mais que ele trazia consigo. Sentiu uma ponta de arrependimento.

Ela sabia que a cicatrização não iria demorar.
E logo não haveria dor,

nem desconforto,
nem incômodo algum. Mas também não haveria sentido.

Em seu lugar, somente o vazio.

"...You give yourself to him...
La la la la la la..."

3 comentários:

Anônimo disse...

Nossa, excelente. Bom texto.

olegado disse...

mi-se-ri-cór-dia, que texto...!!!!

a dor do alívio... vivendo e aprendendo...

Anônimo disse...

Doeu em mim. ~;